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Foto Fomos conhecer o Dr. Nuno Paixão

O Dr. Nuno Paixão é considerado um dos pioneiros da Medicina Veterinária de Desastre e Catástrofe em Portugal já tendo sido destacado para vários cenários onde poucos médicos veterinários portugueses se veriam incluídos: 11 de Setembro e Furacão Katrina! Além disso, também participou como veterinário e operacional em cenários de guerra. Achámos tudo isto incrível, por isso encontrámo-nos com o Dr. Nuno, no Hospital VetCentral - VECC, para saber mais sobre estas missões, os principais desafios e a sua motivação.

Doglink: Olá Dr. Nuno! Obrigado por nos receber tão prontamente.

Dr. Nuno: Esta semana até está relativamente calma, tiveram sorte.

Ficámos impressionados ao ler que o Doutor já esteve em inúmeros cenários de desastre e catástrofe. O que é que leva um médico veterinário a ir para estes cenários?

Não foi algo que pensasse que iria fazer quando comecei na área de Medicina Veterinária. Aliás, nessa altura ainda nem sequer existia a Medicina de Desastre e Catástrofe. Como a maior parte das coisas na minha vida, foi algo que surgiu por acaso... cruzei-me com determinadas situações que me levaram a ganhar interesse na área. No 11 de Setembro estava relativamente perto e a minha chefe na altura foi chamada para apoiar uns cães que tinham começado a trabalhar no local. Chegámos lá cedo, começámos a ver o caos que estava instalado e o que era preciso fazer para tratar daqueles cães todos. A organização das equipas, o saber falar com os condutores dos cães e o saber lidar com as equipas de emergência e socorro – porque todos eles têm uma linguagem e uma atitude muito própria! – foi tudo algo a que tive de me adaptar. Foi nessa altura que comecei a ver que havia ali muita coisa para fazer...

É caso para dizer que o 11 de Setembro também mudou a sua vida, ou não?

Pode-se dizer que sim. Nessa altura foi quando realmente nasceu a Medicina de Desastre e Catástrofe. Houve vários veterinários que começaram a achar piada, a gostar do assunto e começámos a desenvolver cada vez mais esta área. A partir dessa altura fiz uma série de cursos não relacionados com medicina veterinária mas com emergência e socorro de catástrofe em geral. E quando foi o Furacão Katrina, curiosamente também estava nos EUA e fui prestar auxílio.

Mas dessa vez não foi só fazer auxílio aos cães de serviço, certo?

No Katrina fui apoiar os cães que estavam a trabalhar mas também os que estavam desalojados. Esse é o trabalho da Medicina de Desastre. Resgatámos à volta de 11.000 cães e gatos do meio do caos. Foi um trabalho completamente diferente do que tinha feito no 11 de Setembro, mas também muito gratificante.

E também salvaram donos?

Aí é que está. Muitas pessoas quando eram para ser resgatadas, se tivessem cães e gatos, recusavam-se a ir quando as equipas de socorro lhes diziam que não podiam levar os animais. Isso fez com que as equipas de medicina veterinária que andavam a fazer resgate de cães e gatos tivessem de começar a fazer também o resgate de pessoas. Cada vez mais os cães e os gatos fazem parte da família e nós temos a responsabilidade de prestar este auxílio.

Qual é a parte mais difícil de lidar nestas situações?

A parte emocional é extremamente dilacerante numa situação destas. Nós temos que estar preparados física e mentalmente para isso porque as pessoas realmente estão tão agarradas ao cão e ao gato, mais do que a muitos elementos da própria família. Até porque o que muitas pessoas dizem é o seguinte: “o meu filho com 20 anos consegue correr e fugir, o meu cão não”. Ou seja, a vulnerabilidade dos animais de companhia é muito maior, bem como o próprio instinto de protecção das pessoas.

Mas não foi só em cenários de desastre que o Doutor esteve. Também já deu apoio a cães em cenários de guerra, não foi?

Sim, essa área é a chamada Medicina Táctica e nesses cenários prestamos auxílio aos cães militares. Já passei por vários cenários de guerra no Afeganistão, na Síria e no Egipto, em alguns casos também como operacional com os meus próprios cães. 

Quais as diversas utilidades que os cães podem ter nestes cenários?

Hoje em dia os cães fazem de tudo e mais alguma coisa desde busca de explosivos, busca de estupefacientes, busca de pessoas, patrulhamento, ordem pública, detecção de dinheiro falso, até cães de terapia que servem para manter a moral das tropas alta.

Pois é! Não nos tínhamos lembrado do papel dos cães enquanto terapeutas nestas situações...

É um papel extremamente importante. De facto, há uma série de estudos que demonstram que as unidades militares que têm cães apresentam menor incidência de stress pós-traumático, porque há sempre um elemento que está bem disposto, que está lá para brincar e para puxar pelos outros. Isto alivia uma série de complicações, sem sombra de dúvida!

Considerando o papel dos cães de trabalho em cenários de guerra, tem alguma ideia da percentagem de cães que estiveram presentes no Afeganistão ou Iraque, comparativamente às tropas?

Eu diria que é 1 ou 2 %, no máximo 5 %. Há muitos cães que não conseguimos ter registo principalmente num cenário multinacional. Às vezes parece um caos. Ninguém sabe quem é que está no terreno... o que é assustador!

E em termos de percentagem de ferimentos e mortes de agentes caninos?

É muito mais baixa do que a dos humanos, mesmo em proporção.

Mas mesmo estes estando mais expostos? Ou seja, eles têm que entrar primeiro, não é?

Sim, mesmo assim. Se bem que hoje em dia já existem regras de utilização do cão que não permitem que este seja exposto a situações suicidas. Apesar de existir sempre o risco inerente a que qualquer militar está sujeito, há situações em que os cães não podem ser colocados. Além disso, a preocupação com a protecção do próprio cão é cada vez maior – desde óculos balísticos, coletes balísticos, botas...

E para além da protecção, há algum motivo específico para a baixa taxa de ferimentos/morte?

Sim, há motivos psicológicos. Já se provou que um suspeito terrorista tem mais dificuldade em fazer mal a um cão do que a uma pessoa. O cão sempre suscita alguma simpatia e isso, nem que seja por 2 ou 3 segundos, é suficiente para uma equipa actuar e impedir as consequências. Além disso, são mais rápidos, mais pequenos e logo mais difíceis de acertar. As lesões devem-se às vezes à má utilização dos explosivos, mas os ferimentos directos não são frequentes.

E em termos de condições de trabalho?

Às vezes temos um hospital de campanha extremamente bem equipado e outras vezes podemos ter missões em que a única coisa que tenho é o que levo na minha mochila e que também temos de actuar com relativa rapidez e eficácia. Isso muda muito de missão para missão, mas normalmente se pedimos ajuda aos batalhões médicos ou emergência médica para humanos eles deixam-nos usar as suas instalações. Existe um grande respeito pelo militar canino, o que permite que se estivermos numa área relativamente civilizada termos bons meios; se estivermos numa zona mais remota, temos que levar os nossos próprios meios da mesma maneira que as unidades militares têm de levar para elas próprias.

Num cenário de guerra, com certeza que houve muitas situações que o impressionaram. Qual a situação que mais impressionou? 

O que mais me impressionou foram as situações em que os cães ficaram para trás por emboscadas ou por ser demasiado arriscado e quando os militares voltam à base, a unidade inteira, que tinha sofrido baixas e ferimentos, disponibilizar-se para ir fazer o resgate do cão. Lá está: porem em risco a vida deles outra vez para salvar os colegas caninos. Isto foi o que mais me tocou, ver que cada vez mais os cães são considerados elementos como os outros. Curiosamente houve um estudo que demonstrou que o condutor de um cão dá mais facilmente a vida pelo seu cão do que por um companheiro militar da mesma unidade, o que mostra a ligação que existe.

Por outro lado, todas as estruturas de evacuação médica e os batalhões médicos que estão no terreno demonstram grande à vontade e boa vontade em ajudar os cães feridos, utilizando inclusive os mesmos trajectos de evacuação das pessoas e meios (helicópteros, carros, aviões, o que seja) para tratarem esses cães. Isso para mim é o que me toca mais e me faz lutar cada vez mais.

E em situações de busca e salvamento?

Nesses casos, fico impressionado pela gratidão das pessoas ao verem os cães a trabalhar e a terem resultados. As pessoas ligam-se com muito mais facilidade a um cão e demonstram-lhes mais facilmente a sua gratidão do que a uma pessoa.

Para finalizar: actualmente existe uma grande contestação nos media acerca da polícia inglesa que equaciona abater cães de serviço quando estes deixam de serem úteis (ver notícia). Como vê esta situação nos dias actuais?

Não há qualquer necessidade para isso. Para mim a eutanásia é feita quando há razões médicas para tal e não serve para “descartar” os animais. Hoje em dia há muitas alternativas e na maior parte os próprios militares e suas famílias prontificam-se a ficar com os cães porque há uma forte ligação entre o cão e o militar, mesmo quando o militar morre em combate. Nas raras excepções em que o cão não tem um lar, há normalmente santuários para esses cães.

Obrigado pela sua coragem Doutor!